Walter Delgatti

Marcelo Guimarães Lima, Noite Púrpura, pintura digital, 2023.
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Por MARCELO GUIMARÃES LIMA*

Queiram ou não, Walter Delgatti é o nosso Julian Assange. A omissão no seu caso é objetivamente aquiescência ao poder da oligarquia

Walter Delgatti, o homem que, por iniciativa própria e mostrando coragem pessoal, revelou os crimes da Lava Jato, numa terra onde o tacão de ferro da oligarquia incentiva condutas covardes e absolutamente irresponsáveis por parte dos amigos, apaniguados e servidores, e mesmo por alguns dos chamados “opositores” oficiais, Walter Delgatti está preso e agora condenado a 20 anos de reclusão.

Estão soltos: Sérgio Moro, Deltan Dallagnol, o mandante ou os mandantes do assassinato de Marielle Franco, generais golpistas, a turma toda da República de Curitiba, juízes que apoiaram o golpe de 2016, policiais que atiram e matam moradores de comunidades periféricas, os mandantes e comandantes destes policiais, empresários que dão grandes golpes na praça, a família Bolsonaro e seus cúmplices e associados, grandes sonegadores do fisco, donos de latifúndios que invadem terras públicas e terras indígenas, traficantes de armas, os articuladores e os líderes do golpe de 2016, os grandes manipuladores da comunicação de massas, agentes do estado colaboradores da potência estrangeira, milicianos, religiosos que apoiam e articulam a extrema-direita golpista, assassinos de indígenas, grileiros, assassinos de negros, etc.

Esta lista é necessariamente incompleta. Os leitores podem, caso desejem, acrescentar nomes e designações.

Macunaíma era um herói sem nenhum caráter pois multiforme e personagem periférico da grande civilização branca-colonial da história multicentenária brasileira. Em termos pós-modernos poderíamos talvez dizer que Macunaíma encarnava a “diferença” como tal, era múltiplo, era igualmente híbrido e marginal, outro de si, a metamorfose perambulante da canção popular, estrategista espontâneo das classes e dos povos subalternos, sua falta de caráter designava o lugar onde o olhar dominante se desfocava, designava o negativo da afirmação da dominação com seus professos valores e perspectivas.

De outra origem e natureza, penso eu, é a manifesta ausência de caráter na vida pública brasileira (e correlativamente na vida privada dos dominadores) como uma espécie de norma implícita, impositiva, dos atuais herdeiros do poderio escravocrata na história remota do país, que se autoperpetua simbólica e materialmente na modernidade e na pós-modernidade brasileiras.

Para a classe dominante brasileira, fiel às suas origens coloniais, tudo é permitido. Segundo o dito dostoievskiano: Deus está morto, portanto, tudo é permitido. Mas, numa sociedade que se acredita profundamente “espiritualizada”, Deus, o garantidor da moralidade e da lei e da ordem, não pode morrer. Deus é cooptado no sistema de compadrio dos mais iguais, e assim tudo é permitido aos de cima. A moralidade pública tem donos privados que fazem valer seus direitos seculares de “uso e abuso”.

A classe dominante e sua justiça proclamam no país que um dia já foi a pátria de Macunaíma: nenhum gesto de coragem cívica será tolerado, nenhuma virtude pública passará impune, nenhuma iniciativa de firmeza moral deixará de ser coibida por todos os meios. Atos pelo bem comum, não importa se com ou sem intenção, serão duramente castigados como atos escandalosos e perigosos que são, pois, acima de tudo, ameaçam o sistema universal estabelecido da malversação, da fancaria, da manipulação e da hipocrisia premiadas.

Queiram ou não, Walter Delgatti é o nosso Julian Assange. A iniciativa de monitorar e revelar a podridão moral, ética e a destruição do nosso precário sistema legal pela operação Lava Jato, da qual foi cúmplice por ação e omissão o sistema judiciário brasileiro e seus responsáveis, o sistema político e a imprensa num conluio de interesses pecuniários e ideológicos antipovo e antinação, esta iniciativa de Walter Delgatti permitiu a derrocada do projeto autoritário expresso na chamada “República de Curitiba” e contribuiu de forma definitiva para o recuo do neofascismo e a vitória das forças populares na derrota de Bolsonaro em 2022.

Mas a vitória das forças populares não está de modo algum consolidada, os embates seguem e a resistência da oligarquia brasileira (o seu “golpismo estrutural”) não será derrotada sem que seus instrumentos de poder, na estrutura política, nas comunicações, na (des)ordem econômica, sejam retirados, modificados e redirecionados para o controle democrático da maioria do povo brasileiro.

Até lá, precisamos de todas as iniciativas que favoreçam a luta contra a oligarquias e sua ditadura de fato. As ações de Walter Delgatti se inserem objetivamente no contexto de grandes contradições da conjuntura nacional que gerou o golpe de 2016, a eleição do presidente neofascista, a tragédia da presidência de Bolsonaro, e os embates atuais nas fileiras da classe dominante brasileira. A luta interna ao sistema político atual contra o bolsonarismo serve, igualmente, para desviar o olhar a respeito do papel do golpe de 2016 e seus agentes no projeto em marcha da consolidação da “pós-democracia” brasileira, chamemos assim, caridosamente, o regime atual e suas ambiguidades.

Walter Delgatti, assim como Julian Assange, cada um a seu modo e em seus contextos diversos, participaram e participam de forma objetiva do mesmo combate contra as mentiras e manipulações das massas, contra a corrupção material e moral que sustenta o poder das oligarquias regionais e globais. No caso de Delgatti, mesmo a sua cooptação pelo bolsonarismo no contexto de suas dificuldades e ambiguidades pessoais, não desfaz o papel que o que podemos designar como “astúcia da pequena história local”, a ironia objetiva dos fatos e seus contextos, lhe reservou na luta contra o neofascismo, malgrado as limitações, e aqui deixamos de lado as aparentes facilidades do julgamento imediato, tanto suas como, mais importantes, as mais que evidentes limitações cognitivas de seus aliciadores.

Devemos, portanto, apoiar Walter Delgatti contra a sua condenação de cunho ideológico mais do que evidente. A omissão no seu caso é objetivamente aquiescência ao poder da oligarquia, cuja efetiva falta de caráter, quer dizer, na linguagem de todos os dias, a falta a de vergonha mil vezes demonstrada no cotidiano e na história, contamina como doença mortal a sociedade brasileira.

*Marcelo Guimarães Lima é artista plástico, pesquisador, escritor e professor.


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